sábado, 26 de junho de 2010

Reflexão a respeito das horas (e sobre nós, os sabedores das horas)

O que é para uma pessoa não saber ler as horas? A moça sabe, essa que me perguntou as horas porque não sabia vê-las no relógio.
Para estar em sua pele, só podemos imaginar, relembrando a infância, época em que os relógios não nos diziam absolutamente nada. Época em que estar no tempo era acompanhar as pessoas e suas vidas, suas entradas, suas saídas. Época em que, tal como um cão, inconscientes, não sabíamos da vida pelas horas marcadas num objeto estanho, mas pelos momentos e suas especificidades: o momento de acordar era o corpo satisfeito do sono, o momento de comer era a fome, o momento do carinho e da diversão era aquele em que estávamos todos juntos e o momento do descanso viria logo em seguida, assim que fosse necessário.
Também na infância éramos inconscientes dessa manipulação que certos números exercem sobre os homens e as mulheres, os números do relógio manipulam suas ações, bem como os valores monetários, suas idéias.
Para uma criança (que cria e recria o que quiser em sua pequena mente) não saber ler as horas é irrelevante. Mas para uma pessoa como ela?! Aquele moça trabalha, e trabalha duramente. Para ela, ler as horas deveria ser importante. Isso evitaria o esforço adicional não remunerado, o desgaste físico e mental além do necessário, a perda de algumas poucas horas junto dos seus. Para ela, assim como para muitos, tempo é vida e desperdiçá-lo não é coerente. Mas nós temos um instrumento para mensurá-lo e ela não.
Para ela, somente a percepção subjetiva do tempo que passa nas nuvens, nas pessoas, nos carros, na paisagem. No sol que se movimenta no céu sem que percebamos, mas que, para ela é como um rito de passagem, a construção de mais um dia. Para ela, perceber esses breves movimentos que não nos reparam, a nós, os sabedores das horas, é tudo e o que realmente vale.
Sua percepção subjetiva precisará, a qualquer momento, de uma confirmação, como foi feita comigo, com uma simples e qualquer passante. O que para mim é tão natural, um movimento apreendido e feito sem pensar, o movimento de ler as horas, para ela é o momento aguardado, a confirmação do poder ir embora. Essa permissão é pressentida a partir do movimento do dia, por isso é muito mais natural para ela do que para qualquer um de nós.
Nós nos apertamos e nos apartamos uns aos outros num trabalho tedioso sem saber sequer a cor do sol. Entramos cedo e saímos tarde, sem notar que no intermeio das duas escuridões existe alguma luminosidade. Grande evolução a nossa que nos livra de olhar em direção àquilo que nos acalma, qualquer que seja a situação, e que nos enche de paciência a fim de aceitar um pouco mais daquilo que corpos e mentes já não podem mais. O nosso olhar ao relógio tudo cala e suporta.
Não podemos raciocinar - nossa sociedade - sem o tempo realizado pelos relógios. Mesmo ela, a moça, tem de se submeter a esse imperativo, mas sua atitude de desprezo perante o relógio que estava logo à frente e acima dela não me sai da mente. Ela o desprezava, como se não precisasse dele, e achava graça, risonha no fato de não precisar ler as horas já que eu (assim como qualquer um) poderia fazer isso por ela.
Minha aparente superioridade desmoronou perante sua graça.